terça-feira, dezembro 24, 2024

Remanescências

Dia 0: A sensação de "deja vu" deixa-a ansiosa! Segue distraída nos seus pensamentos e nas divagações. Faz o percurso de carro e chega ao destino sem sequer se lembrar de ter feito o caminho. A sala branca vazia de almas convida a mais alguns pensamentos. Será que está tudo bem comigo? E se o problema voltar, como dar a volta a uma situação recorrente? A enfermeira, convida-a a entrar e esperar que o médico regresse com o resultado dos exames. O consultório é amplo. Tem uma mesa rectangular, de vidro opaco com o monitor em cima e umas molduras. Mas só lhe vê as costas. Imagina que fotografias lhe viram as costas. Talvez numa delas seja o médico com a esposa (será que é casado?) num qualquer destino de algumas férias. E os filhos noutra. Se é que tem filhos? E que idades? As paredes são brancas, despidas de ornamentos. Que sala fria! Duas cadeiras, aquela em que se senta de momento, almofadada no acento e nas costas, dá-lhe a sensação de ser massajada. Aquela em que se sentará o médico, ergonómica, preta, com apoios para os braços e um recosto para nuca. Imponente! A maçaneta da porta roda, as dobradiças chiam um pouco e nas suas costas surge o senhor doutor já pedindo desculpa pela espera que a fez passar. Passa por ela, estica-lhe a mão para a cumprimentar. Ela levanta-se um pouco da cadeira e retribui o aperto de mão. Vigoroso, o médico. Mão macia. E ele é novo, Estará na casa dos 30. Contorna a mesa e senta-se. Afasta o monitor para que não haja aquela barreira entre os dois. O contacto visual é fundamental. Abre os testes na secretária, analisa, lê, e diz-lhe que está tudo bem. Os resultados vieram negativos. Já não há remanescências. Está liberta de um monstro que durante um ano lhe comia as entranhas lentamente. Agradece ao doutor e sai do consultório com um sentimento de alívio. Entra no carro e segue de volta a casa. Mais uma vez, não se lembra de fazer os km que separam os dois espaços. Ao chegar a casa, aquele porto seguro, parece que já não é mais o Atlas a segurar o peso do mundo nos seus ombros. Mas algo a incomoda. Uma sensação de que algo não está bem. Dia 1: Dormiu uma bela noite de sono. Acordou, tomou o duche, um belo pequeno almoço e sai. O dia está lindo, solarento. Tem um almoço de amigos. Ao sair de casa, sente aquele calafrio na espinha que a faz tremer o corpo todo. Raios... O que será isto? Está distraída no almoço. Os amigos falam e riem. Há danças e cantorias e ela fala com os amigos discorrendo sobre a sua notícia de ontem. É hora de voltar. Ainda tem coisas para fazer em casa. Lê o que tem a ler e deixa-se tombar na cama não fazendo nada do que precisava fazer. De repente, lembra-se que no dia anterior havia uma sensação de incómodo e logo nesse instante, sente uma comichão que não consegue coçar. É dentro dela. Atrás da cabeça, bem lá dentro. E a comichão incomóda-a pela insistência. E pela persistência. Parou. Mas que raio? Prepara-se para sair e volta para casa tarde. A noite foi animada e saber que traz com ela outro corpo que a aquecerá aquela noite, deixa-a de sorriso maroto. Dia 2: De manhã, convida o corpo a sair. Sem abraço, sem beijo. Só um "vou tomar banho. Quando sair, espero que tu também já o tenhas feito". Ele não tem nome. É só mais outro. A água escorre pelo corpo e pensa como conseguiu ficar tão distante, tão fria como a água que lhe lava os cabelos. Mas espera... Como pode a água ser fria se é a quente que está ligada? O corpo gela e a sensação de comichão alastra-se ao resto do corpo. Mas é por dentro da pele. Como se coça dentro da pele? E o que raio será isto? À medida que se vai tentando libertar desta sensação incómoda, tem uma epifania... Foi naquele dia! Quando ele a descartou tão facilmente como se troca de camisa. Foi nesse dia que se tornou fria, como a água quente que agora desce pelo ralo. A água já não é fria?! Day 3:

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